quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Alice

Postado por Angela Bernardino às 05:29
Hoje meu professor de teoria literária trabalhou esse texto conosco, achei muito interessante e resolvi posta-lo aqui.

   Nosso filho Gabriel, de catorze anos, era gago. Eu e minha mulher Celina já o haviamos levado a vários especialistas, mais a gagueira dele continuava. Gabriel era estudioso e passava de ano em todas as matérias, menos em português, em que sempre ficava de recupeação. Conseguíamos um professor particular para lhe dar aulas particulares e mesmo assim ele passava com dificuldade.
   Nas ocasiões em que o professor mudava, o que podia ocorrer quando Gabriel passava de ano, eu e Celina procurávamos o novo professor para falar das dificuldades do nosso filho. Nesse ano, quando marcamos a entrevista, verificamos que quem ia ensinar português ao Gabriel era uma professora, de nome Alice, que foa transferida de outra escola, uma mulher de aproximadamente quarenta anos, separada do marido e sem filhos.
   A professora perguntou se Gabriel, gostava de ler e minha mulher respondeu que ele detestava e se irrita quando o professor mandava ler alguma bibliografia. A professora Alice disse que isso era coisa comum, os jovens, com algumas excessões, não gostavam de ler.
   Uns meses depois a professora Alice nos telefonou pedindo que fossemos à escola. Ela nos recebeu gentilmente e disse que haviam sido realizadas as primeiras provas e que Gabriel tivera um desempenho abaixo de sofrível. Acrescentou que ele precisaria de aulas particulares. Minha mulher deu um suspiro, era ela quem tomava conta das financias da família e conhecia melhor do que eu nossa situação econômica. Eu sempre achei que Gabriel deveria estudar numa escola pública, mais Celina queria que ele frequentasse o melhor colégio, cuja mensalidade era uma fortuna.
   A professora Alice era uma mulher inteligente e devia ter percebido o nosso embaraço. Ou talvez não tivesse tido a sensibilidade de ler o nosso semblante, apenas notara pelas nossas roupas que nós não pertencíamos ao mesmo nível econômico e social dos outros pais que tinham filhos naquele colégio. Houve um instante em que percebi que a professora Alice olhara os sapatos, e são capazes de descobrir, pelo sapato de uma mulher, o nível econômico social a que a que ela pertence.
   Depois de consultar uma agenda, a professora Alice disse que poderia dar aulas paticulares ao Gabriel sem cobrar por isso. Eu e Celina alegamos, sem muita convicção, que não queríamos dar esse trabalho a ela, mais a professora Alice foi categórica e marcou para todas as terças e quintas-feiras á noite aulas particulares em sua casa. Aquilo nos deixou aliviados, não apenas deixaríamos de pagar peças aulas como elas não seriam realizadas em nosso pequeno e desconfortável apartaento.
   Um mês mais tarde notei que Gabriel estava deitado no quaro lendo. Perguntei que livro era aquele e ele respondeu que lhe fora emprestado pela professora Alice. Ela é boa professora? , e ele respondeu que ela era legal. Contei para Celina o que acontecera. Ela não acreditou que Gabriel estivesse lendo um livro, disse que ele odiava livros. Acrescentei que era um livro do Machado de Assis e ela fez uma careta dizendo que quando mandavam ela ler Machado de Assis no colégio ela não conseguia e pedia a uma amiga para lhe dizer qual era a trama do livro, e acrescentou que Machado de Assis era um chato e insuportável. Mais tarde, quando estávamos na cama, ela disse, essa professora Alice é uma feiticeira. Feiticeira do bem, acrescentou depois de uma pausa. Mais a professora Alice era muito mais feiticeira do que supúnhamos. Alem de ter tido boa nota na segunda prova e de ficar lendo diariamente, até mesmo deixando de ver o jogo de futebol na televisão, Gabriel parou de gagejar.
  Celina lembrou-se do médico que dissera que para curar a guagueira de Gabriel precisaria usar um tal de método holístico. Ele explicou o que era, escreveu num papel, que eu guardei. A guagueira, conforme escreveu o médico, só poderia ser curada através do holismo, que busca a integração dos apectos fisicos, emocionais, mentais, do ser humano. Segundo o médico, nós não eramos apenas matéria física, nem somente consciencia, nem unicamente emoções, éramos uma totalidade que precisa ser analisada em sua inteireza. O tratamendo holístico custaria uma fortuna. Creio que ele não olhou os sapatos de Celina. O certo é que Gabriel não guagueja mais e ao comentar o assunto no escritório um colega me disse que isso era muito comum, um menino ou menina guaguejava ate certa idade e de repente parava de guaguejar. Gabriel não apenas falava com desembaraço, também deixara de ter o aspecto sorumbático de antes. Ter se curado da guagueira lhe fizera um grande bem. E também a Celina, que sentiu-se perdoada. Nós tivemos o Gabriel quando ela tinha dezesseis anos de idade e eu dezoito, ainda solteiros. E ela, que era muito católica, eu diria mesmo uma carola', e acreditava que a deficiência de Gabriel tinha sido uma espécie de punição divina e sentia-se culpada.
   Convidamos a professora Alice para jantar em nossa casa. Era uma pessoa agradável, inteligente e muito falante. Quem ficou muito calado durante o jantar foi o Gabriel, certamente com medo de guaguejar na frente da professora. Eu o provoquei várias vezes mais ele respondia monossilabicamente. Celina perguntou a professora se Gabriel ainda precisa das aulas extras, explicou que não queríamos abusar da sua generosidade. Alice respondeu que ele estava indo muito bem, principalmente na parte da redação, pois passara a ler bastante, mais na gramática ainda havia algumas insuficiências. Um dia recebi um telefonema de um comissário de menores chamado Lacerda, que disse que queria ter uma conversa reservada comigo. Pedi licença no escritório e marquei uma hora à tarde em que Celina estaria trabalhando.
   Lacerda ao chegar se identificou. Em seguida perguntou se eu conhecia a professora Alice Peçanha. Respondi que sim, Lacerda disse que fora do colégio e tivera conhecimento de que o meu filho de catorze anos, Gabriel, estava tendo aulas particulares com ela, em sua casa, durante a noite. Respondi que sim. Ele então me disse que a professora Alice Peçanha fora obrigada a abandonar a escola onde ensinava anteriormente, em outra cidade, porque fora acusada de abusar sexualmente de um aluno de treze anos, a quem também dava aulas particulares, mais a acusação não fora devidamente comprovada. Mulheres peófilas, disse Lacerda, são raras, essa atração sexual de um adulto por crianças ocorre mais com homens. Então, com uma voz grave, disse que gostaria de falar com meu filho, para preparar as informações que seriam enviadas ao juizado. Assim que ele acabou de falar eu perguntei se uma mulher ter relações com um menino de catorze anos faria mal a ele. O comissário respondeu que o Estatuto da criança e do Adolescente, não importava o sexo, á exploração sexual. Meninos e meninas eram tratados igualmente perante a lei, se não se aceitava que um homem adulto tivesse relações sexuais com uma menina, o que chegava a ser considerado estupro pressumido, também não podia se aceitar que uma mulher adulta tivesse relações sexuais com um menino. Disse que era dever deles, comissários, conforme a lei, garantir a inviolabilidade da integridade física, psiquica e moral da criança e do adolescente, dos dois sexos. Lamentava muito, mais precisava ter uma conversa com o meu filho. Se confirmasse que a professora Alice abusava dele, ela seria processada de acordo com a lei.
   Concordei com ele, pedi para me esperar que eu daria um pulo no colégio, que era próximo, e traria o meu filho para conversar com ele. Quando o meu filho chegou o comissário disse que queria falar com ele sem a minha presença. Saí da sala e deixei os dois a sós. O comissario Lacerda devia ser um homem meticuloso, pois ficou conversando com meu filho quase duas horas. Depois abriu a porta da sala e me chamou. Disse que o meu filho lhe disera que a professora Alice jamais tocara nele. E que, conforme a sua experiência em interrogar menores, ele não tinha dúvidas do que o meu filho dizia a verdade. Antes de se despedir, lamentou o tempo que perdia fazendo investigações baseadas em informações falsas. Ficamos calados na sala, eu e o meu filho, um sem olhar pro outro. gabriel, depois de algum tempo, dessera que seguira as minhas intruções, fizera exatamente o que eu mandara, tanto que o comissário acreditara nele. Respondi que ele agira bem. Gabriel disse que gostava da professora, que ela curara a sua gagueira, fizera ele gostar de ler, e que o que eles faziam na cama não era pecado nenhum. Respondi que o assunto estava encerrado, que a mãe dele não precisava saber de mais nada. Gabriel disse que naquela noite tinha aula com a professora Alice, perguntou se devia ir. Eu respondi que sim, ele devia ir  a todas as aulas na casa da professora Alice. Gabriel me deu um abraço. E não falamos mais no assunto.

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